Texto baseado em palestra sobre o tema Felicidade, proferida no III Café Freudiano.
Desde que William Amorim me falou do Café Freudiano, ainda no seu planejamento e nos convidou (a FFI) para ajudar a materializar a parte do líquido preto que pode ser tomado junto com as palavras que nos fazem tão bem, eu achei uma grande ideia. Pelo evento, pelo dia, pelo horário, pelo local e, sobretudo, pelos encontros. Nós e as ideias – ditas sem muito rigor, mas responsavelmente, ao mesmo tempo em que sentimos o aroma do café. Um excelente programa. Um grande sucesso.
Já estava pesquisando sobre o tema por conta de um desejo pessoal. Contudo, aceitar falar sobre felicidade foi um impulso de militante. Depois fiquei pensando que apesar de ter decidido escrever um texto, por um desejo subjetivo de refletir sobre o que pessoas próximas de mim pensam sobre felicidade, me dei conta de que não sou uma especialista nesse assunto tão carregado de sentimentos ímpares; pensei, contudo, que apesar desse não ser um objeto de pesquisa ao qual me dedique, é um sentimento que busco viver. Portanto, minha abordagem não será filosófica e nem psicanalítica; abordarei o tema a partir de alguns fragmentos literários e dos sentimentos meus e dos amigos que fizeram depoimentos para o meu pequeno artigo.
Pensar sobre a felicidade em um processo autorreflexivo veio junto com a convivência com algumas pessoas muito próximas que tiveram variados momentos de depressão, em que, em geral, não conseguiam recuperar a vitalidade, a alegria, a capacidade criativa… a felicidade?
Na convivência, tentei, por diversas vezes, olhar para dentro de mim em busca de explicações… mas, o que via era que o sentimento de tristeza que tão insistentemente invadia meus amigos queridos, em geral não se prolongava em meu ser. Quando isso ocorria sentia que em seguida algo como uma fogueira acendesse dentro do meu corpo aquecendo e espraiando calor.
Eu coloquei o verbo no passado, porque não conto as horas, mas tenho uma impressão que a chama tem sido mais preguiçosa nesses últimos meses. A minha autorreflexão passou a ser sobre o que realmente está acontecendo, se eu de fato tenho sabido viver e alimentar essa chama. De verdade, tenho pensado coisas do tipo: por que acumulei tantas coisas, comprei, construí e reconstruí tantas “casas” por onde estive? Por que priorizei esse tipo de bens materiais? Não é tão mais fácil investir na vida que pulsa, na cultura, nas viagens, no ócio…. ? Quanto tempo gastamos fazendo manutenção da “casa” externa, sem dedicar tempo para nossa “casa” interna!
Ficar com essas dúvidas me remete saudosamente aos bons tempos das infantis, livres, líricas e lúdicas lembranças da criança correndo atrás de borboletas no jardim da mãe ou das gargalhadas fáceis sem parar após qualquer coisa sutilmente engraçada.
Lembranças de sorrir dentro do carro por se sentir plena ou sorrir após um trabalho exitoso, ou durante um encontro de amigos. Sorrir após mais uma notícia de uma viagem pelo Brasil ou pelo mundo para mais um trabalho. Sorrir lendo, assistindo filmes, olhando as flores, caminhando descalça. tomando chá ou café, cozinhando, ao terminar mais um projeto… Talvez o sorriso tem sido sempre o sinal de estar em um instante de felicidade sem a necessidade de fazer o jogo do contente da Poliana.
Mas… Por que agora o sorriso é menos frequente e a chama parece ser menor? Talvez haja certa saudade no peito porque como diz a musica, a felicidade foi embora…? Será? Por quê?
Por que o corpo não é mais tão jovem? Pela crise política, econômica e de valores no Brasil e no mundo? Pela violência circundante que causa pânico?
Ou essa sensação de ter menos momentos de felicidade é pela tristeza de tudo que tem acontecido – em seu conjunto? Certo medo da realidade indefinida pelo poder gerido pelas mentes do atraso?
Luiz Fernando Veríssimo diz sobre o VENTO que “os tristes acham que o vento geme; os alegres acham que ele canta”.
Talvez haja momentos em que estamos assim. Apenas pelo momento.
Mas, e a felicidade?
Ao se fazer uma busca sobre o que é felicidade encontra-se que é um substantivo feminino, que significa qualidade ou estado de pessoa feliz, satisfeita, alegre, contente; sentimento do vencedor, sensação real de satisfação plena, estado de quem tem boa sorte.
Entre as pessoas que responderam a minha pergunta, duas disseram que felicidade é quando se alcança o que se deseja. Mas quando se tem o que se quer não se passa a desejar outra coisa? Nesse caso, essa definição é problemática.
Clovis de Barros Filho define felicidade como um pequeno segundo da vida, um pequeno instante, que você gostaria de repetir. Eu diria que é aquela boa lembrança cultivada, jamais esquecida. E como é importante cultivarmos as boas lembranças! Façamos isso enquanto podemos. Ela alimenta nos momentos de aridez. São a abundância em tempos de escassez. Mesmo na tristeza, elas continuam nos fazendo sorrir.
Uma das reflexões que tem sido recorrente é a de que ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade. Mas também para não ser feliz pode não existir motivos? Ou apenas não enxergamos esses motivos explicitamente? Tanto para ser como para não ser feliz há situações que favorecem no processo.
Ouvi muitas amigas sobre o que é felicidade para elas. Amigas de todas as classes sociais e de diferentes idades, graduações e atividades profissionais.
Estava em uma consulta esta semana quando uma me disse que somos felizes quando o ego se recolhe e a compaixão se espraia. Essa expressão se irradiou em mim e ficou ecoando, lembrou-me de Sêneca que se refugiou nos valores estoicos do desapego e da indiferença e descobriu que esses valores podiam trazer-lhe felicidade, mesmo nas circunstâncias mais terríveis que ele podia imaginar. Ele explica que felicidade “só pode ser alcançada ao se ter, primeiramente, uma mente sã, em controle constante de sua integridade; então, uma mente corajosa e enérgica, que também seja dotada da forma mais nobre de tolerância; capaz de lidar com as circunstâncias do momento; atenta (mas não de forma obsessiva) ao corpo e às suas necessidades; preocupada com outras habilidades que auxiliem nossa vida, mas não se deixando impressionar demasiadamente por nenhuma delas; usando os presentes do destino sem se tornar escrava deles (…) Liberdade e tranquilidade duradouras seguirão depois de termos banido tudo o que nos vexa e nos amedronta”.
Mais recentemente, o inglês Bertrand Russel com a obra A Conquista da Felicidade, com método da investigação lógica disse que ser feliz é eliminar o egocentrismo.
Uma professora que sempre amou sua profissão me disse que era feliz quando estava em uma sala de aula e conseguia acompanhar a construção do saber pelos estudantes. Nem liberdade e nem tranquilidade duradouras para ela. Hoje, sente-se infeliz sempre que entra por aquela porta. Tudo que faz é contar as horas para fugir do ambiente que disse ser ameaçador.
Outra amiga reclamava que seus momentos mais alegres e que lhe deixavam plenamente feliz eram quando toda a família se reunia em volta da mesa para as refeições, o que não mais conseguem realizar.
Quando lia esses depoimentos ficava imaginando que aquilo que nos deixa feliz vai mudando de geração para geração, mesmo que tenha nas ciências, na filosofia e na psicanálise explicações que desvelem as recorrências.
Imaginar a felicidade em um contexto em que se podia interagir com outras pessoas e noutro em que se interage com sensores é muito diferente?
O mundo hoje tem mais sensores do que pessoas. Como diz a propaganda na internet, “a inteligência artificial está presente em todas as coisas”. E tudo isso não está na terra, mas nas nuvens. Nas nuvens (literalmente) onde estão as cabeças de muitas pessoas mais jovens, que antes de conhecerem história, filosofia, psicologia, arte já dominam as mais novas tecnologias presentes nos equipamentos, aplicativos, games… lançados diariamente. Nossas cabeças também já foram para lá (nuvens) através da literatura, hoje essa viagem é mais recorrente via essas tecnologias.
Em Segredo da Felicidade, Georges Bernanos diz que “saber encontrar a alegria na alegria dos outros, é o segredo da felicidade”! Então, precisamos, mesmo sem interagir, ficar feliz, por exemplo, porque nossos filhos estão felizes com seus sensores?
Em Seio da Felicidade, Lao-Tsé de certo modo nos ajuda a entender essa questão ao dizer que “a felicidade nasce da infelicidade; a infelicidade está escondida no seio da felicidade”.
Durante a escrita do texto eu ganhei um livro de uma amiga escrito por Richard Schoch sobre a História da (in)felicidade. (Três mil anos de busca por uma vida melhor).Um Best seller traduzido por Elena Gaidano.
A doutrina religiosa budista também analisou a felicidade, que se tornou um dos seus temas centrais. O budismo acredita que a felicidade ocorre através da liberação do sofrimento e pela superação do desejo, através do treinamento mental.
Confúcio acreditava na felicidade devido à harmonia entre as pessoas.
Em uma das respostas que recebi uma pessoa falou que felicidade tem a ver com a pulsão de vida. É isso? E o que ocorre com a ausência dela, a pulsão de morte? Para desejarmos viver precisamos estar entre o desejo e o gozo. E quando chega a angústia, o que fazer com esse desequilíbrio? Não sei responder. Não enveredarei por essa reflexão. Mas sei que podemos agir.
Quando perguntei o que era felicidade para meus amigos, recebi 36 respostas. Tinha enviado também para minha irmã, Ângela Cabral, psicóloga, que mora em Brasília. Ela não respondeu exatamente a pergunta, mas me enviou alguns links para pesquisa e um vídeo que achei muito interessante, de um médico indiano, Deepak Shopra, que vive nos EUA. Ele, usando conhecimentos da medicina, da religião e da física quântica, entre outros saberes, em dez minutos abordou a importância de se mudar a percepção do corpo físico, que não é físico, mas uma atividade, um processo.
Citando Heráclito que dizia que nenhum homem entra e sai igual duas vezes do mesmo rio, explicou que o eu não pode entrar duas vezes na mesma carne e osso e ficar igual mediante processos como comer, ler, digerir, ou de metabolismo, iluminação, experiências sensoriais, pensamentos, sentimentos, desejos, memórias, imaginação, criatividade, intenção, intuição, inspiração… ou seja (mesmo sem pensar na reencarnação – mas apenas em uma única vida), por conta dessas atividades o corpo está em permanente transformação.
Os átomos que inspiramos a todo o momento espraiam por nossas células e órgãos. Tecnicamente, todos, compartilhamos nossos órgãos com a respiração aqui neste auditório da AMAE, segundo o que explicava esse médico.
Continuou lembrando que existem estudos, cálculos matemáticos que comprovam que cada um de nós tem milhões de átomos que estiveram no corpo de Jesus Cristo, de Buda, de Gengis Khan ou de qualquer outra pessoa; que só nas últimas semanas um quadrilhão de átomos passou pelo nosso corpo, átomos de toda espécie viva no planeta… por exemplo, de uma árvore da Amazônia ou da África, de um esquilo na Sibéria, de um camponês na China… que nenhum átomo do nosso corpo é igual ao átomo de quando nascemos. E concluiu sua apresentação falando sobre a importância de recriarmos o corpo com atividades simples, quase todas que já sabemos, mas nem sempre seguimos, tais como:
- dormir para rejuvenescer o corpo;
- meditar para acalmar e despertar a mente e ter leveza da alma;
- movimentar-se para fortalecer o corpo;
- cultivar bons sentimentos e emoções saudáveis para um bem estar emocional;
- fazer dieta;
Disse ainda, que na base de tudo isso está uma inteligência orquestrando todas essas atividades.
Continuou: temos 600 trilhões de células no corpo, mais que as estrelas da via láctea, mais somente dez por cento dessas células são humanas; somos como uma colônia ambulante de bactérias e células humanas trabalhando como ecossistema. Ressalta, o que muitos físicos afirmam, que nosso corpo é poeira das estrelas que se regula, evolui e pode dar salto não apenas no futuro, mas agora, pois estamos no universo e o universo está em nós, com hidrogênio, carbono, oxigênio, silício, ferro… tudo isso das estrelas que explodem.
Então, como vamos buscar esses instantes de felicidade com esse ecossistema ambulante? Mesmo em tempos de fúria e de ódio como vamos alimentar instantes de paz e de amor? Se não estamos encontrando a felicidade vamos procurá-la interligando pensamentos e trocando átomos através da nossa respiração.
Quero concluir com uma fala de Guimarães Rosa, que diz que “a felicidade se acha é em horinhas de descuido” e como me desejou outra amiga na dedicatória do livro de Richard Schoch “que possamos nos “descuidar” cada vez mais em nossas vidas”.
E ao William Amorim e ao Corpo Freudiano quero dizer que este evento me possibilita instantes de felicidade, todas as vezes que venho para cá intercambiar pensamentos e tudo o mais que nosso corpo permite.
Obrigada!