Há muitas formas de se contar a história.
Depende do que seja prioritário, dos olhares, da empatia e do rigor.
Eu vou contar um pouco da história da EJA no Maranhão de forma leve e breve, em seis pequenos textos que serão publicados no meu blog de educação.
Texto I – O protagonismo da EJA no Maranhão: perdidos e achados da história oficial
(Dialogando com professores da EJA – SEMED – SLS, dia 05 de dezembro de 2018)
Todos os dias são dias para aprendermos coisas novas
e mudarmos nossas vidas e nosso mundo.
Falar sobre a história da EJA em São Luis repercute diretamente em mim, por ter sido a EJA uma das áreas que mais investiguei e atuei, tanto na formulação de propostas, quanto na formação de professores, construção coletiva de materiais educativos e articulação de redes.
A reflexão que faço, portanto, resulta sempre de um processo contínuo de ação – reflexão – ação, iniciado em 1986. Alguns aspectos dessa história serão retomados por mim, aqui, neste diálogo.
Antes da ditadura militar houve inúmeras campanhas e, nos anos 1960, uma tentativa de se criar um amplo movimento pela educação libertadora de jovens e adultos, a partir da experiência de Paulo Freire, realizada no Nordeste Brasileiro.
Com o golpe de 1964, é criado o Mobral, em 1970, e, na sequência, no início do processo de redemocratização, é criada a Fundação Educar.
Esse era um período de dados alarmantes sobre o analfabetismo no país. Nessa década (1960), a taxa de analfabetismo da população acima de 15 anos era de 40%. Duas décadas depois esse índice baixa para 20% da população e, a partir de acordos coordenados pelas Nações Unidas, via UNESCO, houve a aclamação de 1990 como o Ano Internacional da Alfabetização. No entorno desse ano aconteceram muitos debates em nível da sociedade civil e de governos sobre a importância de se fechar a torneira do analfabetismo e de se garantir escolarização para todas as pessoas do mundo.
Desde os anos 1980 eu vivo essa história. Do período pós ditadura militar, costumo organizá-la em três blocos:
1º Bloco – Domínio da Sociedade Civil na mobilização do país pela educação de jovens e adultos e na realização de projetos de alfabetização e pós-alfabetização de adultos.
Muitos educadores, organizações não governamentais e movimentos sociais que se envolveram nessa jornada foram articulados por uma Rede denominada RAAAB – Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil.
A partir da segunda metade dos anos 1980 a Rede é criada. Nos anos de 1987 e 1988 foram realizadas as primeiras reuniões e primeiros encontros com esse objetivo. Na sequência, após o encerramento do Mobral, em 1985, movimentos sociais e ONGs estabeleceram convênios com a Fundação Educar, recém-criada pelo Presidente Sarney. Esse órgão deveria coordenar ações voltadas para alfabetização e pós-alfabetização de jovens e adultos. Ao mesmo tempo, educadores que voltavam ao país, pós-ditadura militar e organizações que foram criadas nesse período retomam, em diversas áreas, de forma contundente, o ideário freireano focado na educação popular.
A RAAAB começa no Rio de Janeiro, mas logo passa a ser coordenada de São Luis. Em 1989, no III Encontro Nacional da RAAAB, realizado na capital maranhense, foi definido o perfil dessa Rede e eleita uma primeira coordenação institucional. Naquele momento, foi escolhida para coordenar essa articulação nacional a ASP – Associação de Saúde da Periferia do Maranhão, que teve importante atuação na implantação do Sistema Único de Saúde e na discussão da educação de jovens e adultos no estado do Maranhão, desde sua criação no início da década de 1980. Nesse mesmo encontro foi elaborada a “Carta de São Luis”, que cobrava do Governo Sarney que a Comissão do Ano Internacional de Alfabetização, recém-criada, no âmbito dos acordos com as Nações Unidas, se reunisse e que dela participassem representantes da sociedade civil.
No encontro (1989) foi discutido que a Rede seria, preferencialmente, uma articulação de movimentos e organizações envolvidos com a alfabetização popular de jovens e adultos e mobilizaria a sociedade para a luta e a garantia dos direitos de todos os brasileiros à educação de qualidade, como direito humano fundamental. A ação da Rede aconteceria via espaços diversos de diálogos, seminários, encontros e outros eventos.
A estrutura da RAAAB, a partir de 1989, previa uma coordenação geral constituída por uma ou mais organizações e a existência de núcleos estaduais. Os núcleos estaduais tinham programações próprias. Por exemplo, o Núcleo da RAAAB no Maranhão realizou cinco encontros e duas feiras de alfabetização, bem como encaminhou junto à Secretaria de Estado da Educação, em parceria com o Fórum Estadual em Defesa da Escola Pública, a implantação das Comissões Nacionais, em nível estadual. O papel desse Núcleo teve relevância no conjunto dos debates realizados em nível nacional.
O objetivo da RAAAB era a luta pela educação popular dos brasileiros e a garantia do direito à alfabetização por parte daqueles que até então não tinham ingressado na escola. Também se voltava para pensar propostas de formação de educadores. Os debates eram realizados nos encontros de estruturação da rede e nos eventos como as Feiras Latino-americanas de Alfabetização. Nessas Feiras, havia debates, intercâmbios, demonstrações de práticas e encaminhamentos de passos seguintes.
A partir da Carta de São Luis, a RAAAB foi convidada a participar da Comissão do Ano Internacional de Alfabetização, que se reuniu de 1989 a 1990. Essa Comissão criada para coordenar, no país, as ações do Ano Internacional da Alfabetização foi responsável pela produção do documento “Alfabetizar e Libertar”.
Posteriormente, a RAAAB foi convidada pelo Governo Collor a participar da Comissão do PNAC – Plano Nacional de Alfabetização e Cidadania – no período de 1991 a 1992. Essa comissão organizou a Reunião Preparatória para a I Conferência Brasileira de Alfabetização. A RAAAB participou de cinco dessas reuniões nacionais.
As notícias da Rede eram divulgadas através do Boletim da RAAAB, com tiragem média de 500 exemplares distribuídos para organizações de todo país. Esses boletins eram produzidos em São Luis e enviados pelo correio aos integrantes da Rede. A edição especial para o V Encontro Nacional da RAAAB (2003) foi o último número produzido pela ASP.
A partir de 1994 até 2004, outra ação da Rede foi importante para a formação dos professores: a concepção e publicação de 18 números seguidos da Revista Alfabetização e Cidadania. Em 2006 foi publicado o número 19, edição especial sobre a diversidade dos públicos da EJA. A ONG Ação Educativa, de São Paulo, teve papel importante nesse momento.
Quadro 34 – Eventos nacionais organizados pela RAAAB
Principais eventos nacionais | Organizador | Local e período |
I e II Encontro Nacional da Rede de Apoio à Alfabetização – para organização da Rede no Brasil | CEAAL | 1987 – 1988 |
III Encontro Nacional da RAAAB | RAAAB e CEAAL | São Luis, 1989 |
Atividades diversas do Ano Internacional de Alfabetização | RAAAB | 1990 |
Reunião Preparatória para I Conferência Brasileira de Alfabetização e Cidadania | MEC, RAAAB | Brasília, 1991 |
IV Encontro Nacional da RAAAB | RAAAB | São Luis, 1991 |
I Feira Latino americana de Alfabetização | RAAAB | Curitiba, 1992 |
V Encontro Nacional da RAAAB | RAAAB | Salvador, 1993 |
II Feira Latino americana de Alfabetização | RAAAB | Salvador, 1993 |
III Feira Latino americana de Alfabetização | RAAAB | Brasília, 1995 |
IV Feira Latino americana de Alfabetização | RAAAB | 1997, Recife |
Fonte: Acervo da ASP
2º Bloco – Maior protagonismo das Secretarias de Educação
A partir da Constituição de 1988 é criada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB / 1996) e a EJA começa a ser visibilizada como política educacional prevista na estrutura da educação básica, como modalidade de Ensino Fundamental e de Ensino Médio. Essa legislação aos poucos vai fortalecer a EJA, via política pública de educação, não mais apenas realizada através campanhas, apesar de continuarem programas e projetos de alfabetização por dentro e por fora das redes de ensino.
Esse momento está mesclado e potencializado com e pelo anterior. Vai tomando forma com o FUNDEF e com iniciativas internacionais como da UNESCO que conclama a sociedade civil e governos a discutirem documentos e a prepararem-se para a V CONFINTEA que aconteceria na Alemanha (Hamburgo), em julho de 1997.
Mediante a omissão do Governo FHC que não tomou medidas mais consistentes para a promoção do debate e para a implantação de propostas mais focadas na educação de jovens e adultos, inclusive reduzindo o financiamento para a modalidade da EJA, outras formas de articulações surgiram no país. A criação de Fóruns Estaduais, que contaram com a participação de representação de órgãos governamentais e das organizações da sociedade civil foi uma dessas formas.
O primeiro Fórum EJA foi o do Rio de Janeiro, criado em 1996, a partir de embriões de articulações existentes no Estado. Em seguida, vários outros foram sendo criados como os de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Paraíba e Rio Grande do Norte. Tinham como objetivo reunir governos e sociedade civil em torno da política nacional da EJA. No Maranhão o Fórum também foi criado e manteve sua agenda.
Quadro 35 – Cronologia na criação dos Fóruns EJA
Eventos e mobilizações | Proponentes | Local e período |
Mobilização para diálogos sobre as deliberações das conferências organizadas pela UNESCO | UNESCO, MEC | 1996, Brasil |
Instituição da Comissão Nacional de EJA – responsável pela mobilização | MEC | 1996 |
Discussão preparatória para V CONFITEA entre Secretarias de Educação, Universidades e ONG´s (discussão e elaboração de documento) | UNESCO | 1997 |
Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos – para discussão da CONFITEA | UNDIME, CONSED, MEC, RAAAB | Curitiba, 1998 |
Mobilização de Fóruns Estaduais e organização de encontros estaduais. | Desde 1996 | |
I ENEJA | 05 Fóruns | 1999, Rio de Janeiro |
II ENEJA | 08 Fóruns | 2000, Campina Grande |
Reunião de discussão do papel dos Fóruns Estaduais de EJA | RAAAB e Fóruns | 2001, Brasília |
III ENEJA | 10 Fóruns | 2001, São Paulo |
IV ENEJA | 12 Fóruns | 2002, Belo Horizonte |
V ENEJA | 17 Fóruns | 2003, Cuiabá |
VI ENEJA | 22 Fóruns | 2004, Porto Alegre |
VII ENEJA | 24 Fóruns | 2005, Brasília |
VIII ENEJA | 26 Fóruns | 2006, Recife |
IX ENEJA | 25 Fóruns | 2007, Pinhão – PR |
X ENEJA | 26 Fóruns | 2008, Rio das Ostras – RJ |
XI ENEJA | 26 Fóruns | 2009, Belém |
XII ENEJA | 26 Fóruns | 2011, Salvador |
XIII ENEJA | 26 Fóruns | 2013, Natal |
Durante esse período, migrou-se de um debate teórico sobre a educação popular de jovens e adultos e a defesa de educação para todos, realizado por movimentos populares, sindicais e ONGs para outra linha de discussão, centrada diretamente na política e na oferta da EJA realizada pelos entes federativos. Além desse deslocamento, perderam força as perspectivas mais voltadas para a educação popular, tendo a classe social como categoria de análise, e ganhou peso o culturalismo e as diversidades dos sujeitos contemplados com as políticas da EJA, que passam a ser adotadas como categorias prioritárias de análises que referenciam as novas pesquisas e propostas.
A concepção de alfabetização e educação como um processo contínuo de aprendizagem, na perspectiva da educação problematizadora de Freire, continua um dos temas de discussão, entretanto, a ideia de educação ao longo da vida passa a ser adotada também com a noção de um tipo de educação cuja metodologia leve o estudante da EJA a aprender a aprender.
Críticas ao conceito de educação ao longo da vida começam a ser feitas, não por essa ideia não ser interessante, pois estamos de fato sempre aprendendo, mas porque por trás da ideia tinha a intencionalidade do mercado de que mediante a perda de empregos provocada pela financeirização e mudanças tecnológicas do sistema capitalista e por suas recorrentes crises se justificaria o trabalhador continuar a estudar não apenas para se preparar para atender às novas exigências do sistema produtivo capitalista incrementado por contínuas novas tecnologias, mas também como uma modalidade de política compensatória, dada a necessidade de se manter esse trabalhador adulto inserido em alguma ocupação.
3º Bloco – Reflexão e produção de conhecimento nas Universidades
Este bloco, segundo o desenho que esboço, surge não como um novo modelo, mas com a entrada mais contundente das universidades no debate sobre educação de jovens e adultos, por dentro dos Fóruns EJA. Esse fato é relevante porque são as universidades as principais instituições formadoras de professores e, até então, a EJA tinha ficado à margem de seu interesse.
Uma participação maior das universidades com a EJA se inicia e se espraia com o envolvimento direto dessas instituições com as seguintes iniciativas: Programa Alfabetização Solidária (Governo FHC), PRONERA (MST) e, mais recentemente, com o PROEJA (Governo Lula). Gradativamente, alguns cursos de formação inicial e de pós-graduação, ou disciplinas nos cursos de Pedagogia e Licenciaturas foram sendo implantados nas universidades brasileiras.
A entrada das Universidades, de modo mais contundente, se amplia com participações mais efetivas nos Fóruns e com a criação do GT 18 da ANPED, quando pesquisas se multiplicaram em todas as regiões do país. São os Seminários Nacionais de Formação de Educadores da EJA que dão um tom mais formal a essa entrada das universidades, que passam a ter um lugar de destaque nesse cenário nacional da Educação de Jovens e Adultos.
Quadro 36 – Seminários de EJA
Seminários | Local e período |
I Seminário Nacional de Formação de Educadores de EJA | UFMG, 2006 |
II Seminário Nacional de Formação de Educadores de EJA | UFG, 2007 |
III Seminário Nacional de Formação de Educadores de EJA | Porto Alegre , em 2010 |
IV Seminário Nacional de Formação de Educadores de EJA | Brasília, 2012 |
Em todos esses momentos, educadores maranhenses estiveram envolvidos. Em alguns deles, na coordenação do processo.