Durante o VIII Encontro Estadual de Políticas Públicas e Juventude Regina Cabral[1] idealizadora do Formação – Centro de Apoio a Educação Básica (Instituto Formação), organização maranhense que cada vez mais cresce e irradia os conhecimentos que concebe para outros lugares desse nosso grande / pequeno mundo fez uma palestra sobre o pensamento do Formação a respeito de escola de nível médio como ponto de desenvolvimento de território.
O nosso GT de Educação (GTE) fez uma entrevista com ela sobre essa tecnologia, em desenvolvimento desde 2003, que foi inicialmente implantada na Baixada Maranhense.
GTE: Você sempre parece tão feliz quando fala do Instituto Formação. É felicidade mesmo?
RC: Em geral sou feliz com o que faço e sou feliz por ter companheiros éticos e de coragem sonhando e materializando sonhos comigo, desde 1999. Também falar em educação sempre me deixa feliz. Pensar em soluções para situações difíceis é uma das coisas que mais gosto. Não sou uma pessoa para revisar ou para seguir o determinado. Sou uma pessoa para inventar, criar e sempre que falo to criando, com liberdade e com o máximo de amor que pode sair de mim. Amor pelo outro. Amor que impulsiona a continuar sonhando com um mundo mais justo para todos. Isso me deixa feliz.
GTE: Por falar na equipe do Formação – nos seus associados e direção – sempre as pessoas ficam curiosas para saberem como sendo todos tão diferentes, no trabalho têm procedimentos tão parecidos. O que você acha disso?
RC: Ainda lembro dos primeiros momentos quando fundamos o Formação. Uma das motivações era criar um chão saudável, onde pudéssemos trabalhar de forma horizontal, sem chefe (mas com comando), sem disputa e combatendo ao máximo os defeitos inerentes a cada um de nós, pois somos humanos com defeitos como todos os demais. Acontece que você não precisa alimentar os defeitos; pode alimentar as virtudes, a positividade, o lado bom que também todos os humanos têm. Nem sempre conseguimos, mas tentamos porque sabemos que muitas vezes atitudes como disputa, inveja, corrupção, ambição desmedida entre outros aspectos negativos destroem ambientes de trabalho. Penso que se o Formação em algum momento for tomado por esses sentimentos nós fecharemos as suas portas. Porque não o criamos para ter essa configuração. É verdade que somos diferentes e parecidos. Diferentes na vida pessoal e social. Parecidos na forma de pensar e administrar o Formação. Em geral atuamos pelo consenso, porque os grandes temas, as grandes decisões têm respostas muito claras para todos nós.
GTE: Por que você sempre fala para os jovens que eles têm grandes potencialidades inexploradas?
RC: Em primeiro lugar porque é uma verdade. Para mim e esse pensamento hoje é também de todo Formação, não importa onde nascemos e vivemos, qual é a nossa cor, quanto dinheiro no bolso ou no banco temos etc. se temos oportunidade de aprendizagem e de desenvolvimento vamos muito além, estando na Baixada Maranhense ou em Seul. Todos nós, todos os jovens temos grande potencialidade e por isso mesmo o que cada um é pode se tornar ainda maior, desde que haja rica mediação entre o seu real que é a vida do momento e esse seu potencial a ser ampliado e materializado na própria existência cotidiana. Vigostky nos fala sobre isso com suas Zonas de Desenvolvimento (Real, Proximal e Potencial).
GTE: O Maranhão oportuniza esse desenvolvimento ao jovem?
RC: Historicamente não. Ainda hoje, muito pouco. Poderia dar vários exemplos aqui, mas costumo dizer que o Maranhão pouco investe na educação de seus moradores apesar de ser um estado com grande potencial de desenvolvimento. Vou citar três exemplos dessa potencialidade: temos o porto potencialmente mais profundo do país e o mais perto do Pacífico / Oriente (pelo Canal do Panamá) e da Europa – poucos maranhenses conhecem o Complexo do Itaqui; São Luis tem um rico Centro Histórico que se potencializado possibilitaria bem estar para os maranhenses e turismo de qualidade para quem vem de outros estados e países; o estado possui um litoral extenso e rico que, em geral, tem seus frutos do mar explorado por outros estados e países. Para desenvolver essas potencialidades não há investimento estruturante que prevê o processo de desenvolvimento humano de sua população.
GTE: Por que isso ocorre?
RC: São algumas as razões. Mas eu simplificaria dizendo que os governantes daqui, regra geral, parecem que ou pensam pequeno ou são ingênuos e ou pensam de forma mesquinha e do ponto de vista do lucro pessoal. Não se estrutura o estado para que se desenvolva. Tudo é feito aos pedacinhos. E pedacinhos que logo são abandonados. Por exemplo, quando uma obra é construída aqui, ela não é custeada de forma permanente para permanecer em pleno funcionamento. O mesmo governante ou o seguinte espera que a obra inaugurada vire sucata para ou construir outra ou fazer um projeto de reforma da mesma, com valor muitas vezes equivalente a uma nova construção. É muito pouco sentimento de coletividade e de respeito ao espaço público. Isso é lamentável. Ainda lembro que quando eu cheguei em São Luis tinha orgulho das praças: Gonçalves Dias, Deodoro, Benedito Leite… hoje, cada vez que passo na Deodoro tenho vontade de chorar. Esse equipamento público de grande valor agregado virou alguma coisa inexplicável. E eu diria que a revitalização do Centro passa pela revitalização dessas praças com custeio e segurança permanente. Construíram o Aterro do Bacanga, Litorânea, Lagoa da Jansen, Península… e tantos outros equipamentos públicos nas comunidades. Como é que eles estão? Em relação à educação há apenas uma reprodução do que vem da política nacional básica, não é concebida uma política cujo olhar esteja direcionado para esta população.
GTE: Pelo que se conhece, todas essas reflexões não estão dissociadas da problematização feita pelo Formação e que orienta o conceito de educação integral integrada ao desenvolvimento territorial definido em sua missão. Por que esse foco?
RC: Educação integral integrada ao desenvolvimento territorial não é apenas foco do Formação, mas é a sua missão . Desde o início já se trabalhava com o conceito de educação integral e, em 2003, se incorporou a sua integração com o desenvolvimento territorial. Nesse ano, quando estávamos mobilizando a juventude do Ensino Médio na Baixada Maranhense, que posteriormente se articularia em Fóruns da Juventude, usávamos alguns slogans do tipo: “jovem estuda e trabalha”, “jovem se comunica e faz arte”, “ jovem produz e ou se deleita com a arte”, “ jovem pratica ou assiste esporte”, “jovem come, dorme, milita, inventa, participa”, não como fragmentos, mas com a ideia de que faz (se quiser e tiver oportunidade) tudo isso, de forma integral. E ao se desenvolver como um todo, também tem mais condições de influenciar e intervir no desenvolvimento do lugar onde estiver, quer seja a escola, a família e ou a sua cidade / território.
GTE: O jovem pode transformar o mundo?
RC: Todos nós podemos. Mas, no trabalho que fazemos acreditamos ser o tempo da juventude o mais fértil para esse fim, porque é o período de nossa vida que a vivemos com mais liberdade para sermos o que quisermos, para vivermos os sonhos e a atuação apaixonada. Por isso trabalhamos com o pensamento de que os jovens podem transformar o mundo, ou não. E transformá-lo para melhor ou para pior, de acordo com as utopias que os alimentem e que lhes interessem. Tudo depende do que o jovem tem como conteúdo em sua zona de desenvolvimento proximal. No Formação trabalhamos para que seja uma cidadania exercida para a construção de um mundo mais justo e com inclusão social e material.
GTE: E a atual conjuntura ajuda o jovem a sonhar?
RC: O mundo está meio caótico. O Brasil vive um momento de muita complexidade, acirramento. É como se todo o pensamento conservador e autoritário estivesse adormecido e, de repente acordasse. Não acordou com timidez, mas de forma voraz, alimentado e respaldado por muitos poderes instituídos em nossas cambaleantes República e Democracia. Mas, o mundo e o nosso país podem ser melhor. Do meu ponto de vista nossas utopias e sonhos, por mais fragilizados que estejam, continuam vivos e podem ser fortalecidos. E acredito que a vida que temos é para vivermos com intensidade, ética, solidariedade, liberdade e respeito ao outro e ao meio ambiente que nos abriga.
GTE: O Formação atua nas pontas da Educação Básica: Educação Infantil e Ensino Médio. Por quê:
RC: É na infância que se cria a base para um mundo melhor e é na juventude que fazemos esse mundo melhor acontecer.
GTE: Como nasce a ideia de Ensino Médio como ponto de desenvolvimento de território?
RC: Para o Formação a prioridade é conceber projetos para sujeitos de direito com direitos não cumpridos e que vivem em territórios mais vulneráveis, com baixos indicadores sociais. Projetos que concebem programas de formação voltados para o desenvolvimento de pessoas que com o conhecimento podem transformar suas realidades. Em 2003, o Formação foi procurado pelo UNICEF para conceber um projeto para a juventude e decidiu primeiramente ouvir os jovens sobre a educação que tinham. Foi um amplo processo investigativo com grande participação de estudantes do ensino médio do Maranhão. Cruzamos dados oficiais, com potencialidades territoriais e sobre quais eram as avaliações e demandas desses jovens. Com essa pesquisa sistematizada e o cruzamento da necessidade de desenvolvimento orgânico do estado concebemos o projeto de Ensino Médio Profissionalizante como ponto de desenvolvimento orgânico de territórios vulneráveis.
GTE: Foi a partir dessa pesquisa que nasceu a ideia dos CEMPs e da EJA Profissionalizante?
RC: A pesquisa veio primeiro. A partir de uma demanda do UNICEF decidimos fazer a pesquisa como marco inicial de projetos com adolescentes e jovens em parceria do Formação com esse Fundo Internacional das Nações Unidas. Depois vieram dois movimentos: um de demanda do Prefeito de São Bento para construirmos um projeto educativo inovador para o ensino médio a ser implantado como política municipal em um lindo prédio que eles estavam construindo. Confiamos na Prefeitura e a Prefeitura confiou no Formação e assim nasce a rica história dos CEMP´s na Baixada Maranhense. Um segundo movimento foi o da EJA, numa construção coletiva de um projeto profissionalizante em nível básico para moradores da Baixada que estavam nessa modalidade do ensino fundamental. Ambas as experiências estão divulgadas em vários artigos.
GTE: Sei que há um cuidado muito grande com a inclusão das pessoas nos projetos, tanto que sempre é usado o lema Nenhum a Menos, do filme do Diretor chinês Zhāng Yìmóu. Qual é o conceito de inclusão do Formação nesses projetos?
RC: É interessante você trazer à tona não apenas o conceito inclusão, mas esse filme desse roteirista, cineasta e produtor do cinema chinês que produziu essa linda história sobre a precária escola primária da aldeia de Shuiquan, que durante um mês teve que receber uma voluntária de apenas 13 anos como professora, na ausência do professor que necessitou afastar-se para visitar a mãe doente; essa jovem tinha como maior obstinação (para além do conhecimento que não dominava muito) a permanência de todos os alunos na escola, nem que por isso tivesse que usar todas as estratégias que conhecia e outras pensadas no processo. Usamos muito esse filme em Programas de Formação de Professores que realizamos nos anos inicias da história do Formação. E esse lema de nenhum a menos também ficou para todas as nossas ações. Nenhum jovem a menos nas ações.
Para o Formação a inclusão nos projetos de pessoas deficientes também é uma prioridade – pensamos por isso mesmo a acessibilidade e outros cuidados que merecem atenção; mas também consideramos outros elementos de inclusão, por exemplo, na prática do esporte envolver o gordinho com o magrinho, o homem com a mulher, e pessoas de todas as cores e tamanhos. Em todos os programas, não nos interessa os conhecimentos prévios em si, pois a partir do que cada um tem e sabe, vamos juntos rumo ao mais longe que pudermos alcançar.
GTE: Voltando à Educação Básica, porque foi pensado o Ensino Médio Profissionalizante e não a formação geral para a continuidade no Ensino Superior? Não há muitas críticas de que um está destinado aos pobres e o outro aos ricos?
RC: Essa é uma reflexão importante. De forma geral, os estudos na graduação e licenciaturas sempre foram muito restritos a uma determinada classe, sobretudo cursos como Medicina, Direito, Engenharias. Contudo, com as políticas de abertura de vagas em universidades e de cotas, ampliação de FIES, exame nacional (ENEM) houve um movimento de democratização com a inclusão de segmentos econômicos diversos nos muitos cursos ofertados por universidades, centros e faculdades públicas e privadas. Essa abertura tende a diminuir com as políticas do pós-golpe que derrubou a ex Presidente Dilma Roussef. Particularmente, eu e o Formação defendemos nenhum a menos (que deseje) nas universidades. Contudo, também há que se conceber bons cursos técnicos em nível médio, de preferência que integrem o conhecimento mais geral e científico ao conhecimento profissionalizante, pois dessa forma o aluno pode se profissionalizar ainda na educação básica, mas prosseguir essa ou outra carreira em nível de graduação e pós-graduação, até onde desejar ir. Não concordo que se ofertem cursos apenas na medida da necessidade e exigência do mercado. E está ai a grande diferença dos Centros de Ensino Médio que concebemos, não apenas para ofertar cursos demandados no sistema capitalista, mas cursos voltados para as potencialidades locais, mesmo aquelas mais invisíveis, aparentemente insignificantes, ainda não inseridas em arranjos produtivos. Pensamos uma escola com cursos voltados para desenvolver pessoas que desenvolverão seus lugares de vida.
GTE: Quais ideias são fundamentos desse modelo de escola-ponto de desenvolvimento de território?
RC? Por trás da ideia do Ensino Médio Integrado ao Desenvolvimento tem outras ideias. A ideia de que essa escola pode ser um ponto de desenvolvimento de território, sendo a cidade o seu próprio laboratório, ou seja, para um curso de agroecologia, o laboratório são os quintais dos agricultores; para cursos de informática, podem ser usados para a parte prática laboratórios das escolas – que ficariam em permanente manutenção e atualização pelos alunos dos cursos técnicos, bem como o comercio local que seria lugar, ainda na aprendizagem dos estudantes, de experiência e de desenvolvimento de sistemas, portais, designs, planilhas e assim, sucessivamente. Outra ideia importante é a de que jovens dessas escolas se preparariam para serem filósofos do trabalho, atuantes organicamente no desenvolvimento de territórios com baixos indicadores sociais.
GTE: Nessa concepção de escola a pesquisa é importante?
RC: Sim. Trouxemos para o nível médio o tripé da universidade que prevê simultaneamente o ensino, a pesquisa e a extensão. O jovem estuda na escola, pesquisa a comunidade, a cidade e aplica o conhecimento ainda no processo de aprendizagem. É o que ele deve fazer quando estiver no quintal do agricultor ou em frente ao computador do comerciante local.
GTE: Um dos pontos importantes é o de estímulo de ideias de negócios criativos. Como isso ocorre?
RC: A estrutura curricular desses Centros de Ensino Médio Integrado é composta por três núcleos: um geral – conhecimento científico e de formação geral; um profissionalizante – de aprofundamento da profissão; um de incubação de ideias e desenvolvimento de projetos – para orientar quem desde o ensino médio tem um projeto para empreender.
GTE: Esses conteúdos curriculares são integrados?
RC: Trabalhamos na concepção e no processo de formação de professores com o conceito de interdisciplinaridade; contudo, compreendemos que integrar conteúdos deve ser uma ação de cada coletivo de professores, por escola. Quanto mais o professor dominar sua área e outras áreas, mas ele conseguirá dialogar com os diversos conteúdos e compreenderá quais sínteses podem ser feitas sem empobrecer o que deve ser possibilitado na zona de desenvolvimento proximal dos estudantes da escola.
GTE: Quais são os planos de disseminação dessa ideia?
RC: Sempre que temos oportunidade divulgamos essa forma de pensar e conceber o ensino médio. As experiências da Baixada Maranhense, como eram de iniciativa de municípios, foram estadualizadas e os projetos educativos foram esvaziados. Contudo, é uma experiência que foi adotada em outros lugares. Atualmente, estamos dialogando com um grupo de Moçambique para a implantação de um Centro com essa metodologia na cidade de Tete. E sempre que formos solicitados continuaremos a divulgar, implantar e aprofundar esse conteúdo.
[1] Cofundadora e Diretora do FCAEB (Formação – Centro de Apoio a Educação Básica). CEO do IMAES (Instituto Maranhão Amazônia de Educação Superior). Diretora da FFI (Formação Faculdade Integrada). Fellow da Ashoka. Especialista em Economia Social e Desenvolvimento Local pela Universidad General Sarmiento. Doutora em Educação pela USP / Universidad de Sevilla.