No geral eu acredito nas pessoas e parto desse pressuposto quando inicio um trabalho. Em relação a minha prática educacional acredito que tanto professores, quanto alunos aprendem sempre quando se dispõem a isso, quando tem apoio, quando são estimulados a pensarem, quando são desafiados. Entretanto, confesso que minhas expectativas foram superadas muitas vezes. Por exemplo, fiquei muito alegre num trabalho que realizei no início deste novo século com professores de 1a a 4a serie, em escolas públicas de Alto Alegre do Pindaré.
Nessa experiência, fiz durante alguns meses formação de professores focando o trabalho com língua portuguesa a partir de leituras permanentes realizadas nas salas de aulas pelos professores e estimulava-os (planejando junto) a implantarem projetos didáticos de leitura e escrita, envolvendo textos literários, científicos e informativos: narrativas, poesias, receitas, letras de músicas, pequenas enciclopédias. Como produto dos projetos escolhidos as crianças organizavam livros, gravavam cd’s, participavam de recitais, reconto de narrativas e exposição em varais, de textos produzidos. As razões para minha alegria foram os resultados desse trabalho.
As crianças ficaram animadas e querendo participar, sem medo de plateias, de microfone, olhando para frente. Para crianças tímidas, pouco estimuladas, predominantemente ouvintes na escola, são passos importantes para seu desenvolvimento. Foi bem rápida essa mudança de postura entre a timidez e a interação e altivez de meninos e meninas do interior do Maranhão.
As crianças em pouco tempo começaram a escrever, produzir, serem autoras de seus textos. Mesmo só quando repetiam e declamavam poesias, eram suas as interpretações do que aprendiam e memorizavam. Isso também foi um avanço! E eu quando as via me reportava a outros cenários, que também conhecia pelo papel de pesquisadora, em que crianças ficavam sentadas copiando sem parar e sem aprender.
Apenas em quatro meses aquelas crianças criaram formas de interpretação para atividades como hora do recital ou do reconto, nem sempre mediante orientação dos professores; houve caso em que elas “inventaram” a forma de recitar; as crianças de 1a série desenharam pelo que imaginavam.
Elas estavam falando de autores, de livros, dos textos lidos…; Antes dessa experiência havia alguns livros, algumas leituras, só que a literatura não tinha “invadido” a sala de aula, como acontecera então. Ainda estava longe do que se desejava, mas já era um bom avanço.
Recordo que os professores estavam satisfeitos por um lado e “impressionados” por outro. Em várias reuniões de acompanhamento dos professores, nos momentos de formação, eles revelavam que era tudo muito difícil, que não dariam conta, que os alunos não aprenderiam, que não teriam produto final. Um professor revelou: “Não imaginava que meus alunos fossem dar conta”; outra professora disse: “Jamais pensei que todas as crianças fossem aprender a recitar. Nunca mais vou subestimar um aluno”. De fato, os professores e professoras foram surpreendidos.
Volto meu pensamento para outra escola na zona rural de São Luis e lembro-me do Rafael, que estava há sete anos repetindo a 1ª série. Isso era 1994. Eu coordenava um projeto de construção de qualidade na zona rural se São Luis. Rafael abriu e atravessou uma porta naquele ano; no meu trabalho havia decidido que daria uma atenção especial a ele, pois estava muito chocada com o fato de ele permanecer quase uma década sem oportunidade de se mostrar que era capaz. Por que será que uma escola permitia isso?Eu o ouvia, dava atenção a ele e o estimulava permanentemente, mostrando suas capacidades. Realizava formação de professores na própria escola. Ia lá apenas uma vez por semana. Um dia, estava com muitos livros na sala, orientando a professora e fazendo junto com ela o trabalho com os alunos. Estavam lendo e produzindo textos. De repente, vi Rafael andando pela sala como se estivesse ensinando os colegas e lhe pergunto: Por que você não está fazendo seu trabalho Rafael? E ele me responde, com um sorriso de orelha a orelha: – Porque eu já terminei o meu e estou ensinando meus colegas. Foi mágico!Naquele momento ele saiu da 1ª série, depois de sete anos.
Todo esse processo e essas recordações têm me feito pensar, me levam a outras experiências enquanto formadora de professores. Algumas perguntas que faço são: “Quando passamos de um estágio a outro?” “Quando compreendemos um conteúdo, o assimilamos e o incorporamos em nossa prática?” “O que aconteceu na formação que fiz com esses professores, que me parece ter sido mais efetiva que em outros momentos, em termos do reflexo em sala de aula?” “Bom, mas, como se mede isso?”
Em outras oportunidades eu já trabalhava alfabetização, na mesma concepção e com atividades sequenciadas parecidas. O que então foi diferente? Será que o fato de em Alto Alegre eu ter acompanhado sistematicamente uma Secretaria de Educação ao longo de um ano e meio fez a diferença? E com Rafael?
Não estou dizendo que naquela oportunidade somente esse trabalho tenha feito uma mudança mais radical, mas sinalizou caminhos.
As respostas para essas e outras experiências que vivi nos anos 1990 e 2000 parecem óbvias, mas nem tanto. Existem variáveis, que nem sempre estão diretamente relacionadas com nossa ação, apesar desta ser muito determinante. Fico imaginando, contudo, que algumas condições fundamentais para o aprendizado dos alunos de Alto Alegre foram: o fato de ter orientado a formação a partir de projetos bem elaborados, consistentes, com produtos finais claramente definidos; ter feito o acompanhamento sistemático, num processo de formação continuada com intenção e focos claros, por série; o envolvimento de Secretária, Diretores e Supervisores e não apenas dos professores; ter disponibilizado alguns recursos como livros, papel, lápis de cor e outros…; ter planejado as grandes etapas sempre prevendo onde se queria chegar; o professor planejava semanalmente a partir dos objetivos e das linhas gerais do planejamento. O mesmo ocorreu na escola do Rafael.
De fato, o óbvio só se revela quando é dito, ou quando há a quebra de transparência. Às vezes olhamos para frente e enxergamos o que está distante de nossos olhos e não o imediatamente à frente dos mesmos. Provavelmente, o que falta aos professores é enxergarem o óbvio na educação, o simples – mas eficiente, que haja quebra de transparência – o que ocorre quando esse óbvio é percebido. Também que os professores procurem cada vez menos copiarem modelos e cada vez mais serem autônomos em seu conhecimento. Os alunos do passado e do presente precisam indagar, perguntar, se inquietar, ter sede de saber; e o professor cada vez mais ser fonte para saciar essa sede dos alunos.
Por que será que a professora citada anteriormente, achava que nem todos seus alunos eram capazes de aprenderem? Um dia entrei na sala dessa mesma professora, de 1a série. Perguntei aos alunos quem sabia recitar poesia. Vários levantaram a mão, entre eles uma criança negra, tímida, no fundo da sala. Eu a vi e aguardei que os colegas, mais desinibidos e “afoitos” falassem primeiro. Após a fala desses, pedi que o menino que estava atrás falasse também. Ele primeiro virou-se para ler o poema e eu lhe pedi que não lesse, mas sim recitasse, pois ele também sabia, e ele recitou. No corredor, a professora me disse: “Eu não sabia que ele sabia!” Perguntei-lhe: alguma vez você deu chance a ele de falar? “Não”, disse-me ela. Ao dizer que nunca mais duvidaria da capacidade de seus alunos, me fez pensar. Será que este semestre foi um ponto de inflexão na vida dessa professora?
Quando falo de ponto de inflexão da professora e da porta que Rafael atravessou me refiro ao fato de que todos nós passamos por determinadas situações em nossas vidas que nos fazem modificar posturas, redirecionar práticas; situações que possibilitam a passagem de um compartimento para outro; é como se atravessássemos uma porta nesses momentos. O que será necessário fazermos para atravessarmos essas portas? Quantas portas, diretoras, professores e nós mesmos teremos que atravessar para contribuirmos com a mudança da educação pública de nosso país?
Essa resposta e tantas outras, eu realmente não as tenho. Mas estou sempre me dedicando para que a educação possibilite alicerces fortes para construções seguras.